* Este texto foi redigido pelos pesquisadores que formam o Grupo de Trabalho de Geografia Marinha e Costeira do Enanpege.
A Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia (ANPEGE), juntamente com a Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), vem a público manifestar com profunda indignação, posição contrária a ameaça de nosso patrimônio costeiro, tema central da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 03/2022, que tem levantado diversos debates na mídia e nas redes sociais nos últimos dias.
A partir da Audiência Pública realizada em 27 de maio deste ano no Senado Federal, foi proposta a revogação do inciso VII do art. 20 da Constituição e o § 3º do art. 49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (lei federal nº 13.240/2015), extinguindo os terrenos de marinha e seus acrescidos e dispondo sobre a propriedade desses imóveis na PEC nº 03/2022. Para compreender o que está sendo ameaçado, é preciso ter um olhar sobre os limites espaciais definidos nas legislações aplicáveis às zonas costeiras e trazer à tona os conflitos territoriais envolvidos.
A zona costeira brasileira tem sua definição legal na lei federal nº 7.661/88, que instituiu o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (PNGC). Nele, é definido o limite espacial da zona costeira, com base em critérios ambientais, patrimoniais e políticos e respeitando os limites administrativos dos municípios. Inserida nas zonas costeiras está a orla marítima, outro espaço de gestão, definida no decreto federal nº 5.300/04, e abrangendo uma faixa que vai desde os 10 metros de profundidade dentro do mar até a distância de 50 metros em áreas urbanas ou até 200 metros em áreas não urbanizadas, contados a partir do final da praia. Em 2015, a lei federal nº 13.240/2015 estabeleceu uma faixa de segurança da União de 30 metros, contados também a partir do final da praia. A praia, por sua vez, é definida pela lei nº 7.661/88 como área coberta e descoberta periodicamente pelas águas, acrescida da faixa subsequente de material detrítico (tal como areias, cascalhos, seixos e pedregulhos), até o limite onde se inicie a vegetação natural, ou, em sua ausência, onde comece um outro ecossistema. Em meio a tantas delimitações, estão os terrenos de marinha que, na grande maioria dos casos, se sobrepõem às praias e às orlas marítimas incluindo os ecossistemas adjacentes, podendo também, em áreas que foram aterradas, estar situados um pouco mais distantes do mar. Nestas últimas situações, somam-se aos terrenos de marinha seus acrescidos, que se estendem em direção ao mar.
É importante esclarecer que os terrenos de marinha não são terrenos da Marinha do Brasil, mas sim imóveis e terrenos da União, que têm sua definição legal no art. 2º, do decreto-lei n° 9.760 de 1946 e que abrangem uma faixa de 33 metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, a partir da posição da linha de preamar (maré alta) média de 1831, abrangendo uma faixa no continente, outra na costa marítima e nas margens dos rios e lagos e contornando as ilhas situadas em zonas onde se faça sentir a influência das marés. A PEC nº 03/2022 sugere revogar também a faixa de segurança de 30 metros, contados a partir do final da praia, existente ao longo de todo o litoral brasileiro, também pertencente à União.
Trata-se, portanto, de uma proposta que afeta toda a extensão do litoral brasileiro, abrangendo suas praias e a ampla diversidade de ecossistemas costeiros, como manguezais, dunas, restingas, falésias, marismas e tantos outros ambientes que compõem esta paisagem dinâmica na interface entre a terra e o mar. Refere-se a toda costa marítima do Brasil, incluindo a orla onde concentram-se múltiplas atividades com enorme valor para toda a sociedade e a maior densidade urbana do país. A orla marítima possui complexidades por seu valor social, cultural, econômico e ambiental, possuindo, inclusive, um projeto especial para sua gestão, denominado Projeto Orla, conforme previsto no decreto federal nº 5.300/2004. O projeto visa garantir o ordenamento e o planejamento territorial, tendo como uma das orientações fundamentais o estabelecimento de faixas de proteção e de não edificação para mitigação e adaptação às mudanças climáticas.
Na contramão da história da gestão costeira brasileira e mundial, a PEC nº 03/2022 objetiva autorizar a transferência dos terrenos de marinha a particulares. Isso significaria, na prática, que empresas como resorts, condomínios, hotéis, cassinos e outros ocupantes privados poderiam adquirir a posse de toda esta franja costeira. Importante ressaltar que esse tipo de exploração econômica, tende a favorecer alto volume de concentração de renda e da mesma forma, impedem ou prejudicam as atividades econômicas coletivas de comunidades tradicionais que praticam o extrativismo artesanal e cujo uso desses espaços, permitem a reprodução territorial e a reprodução coletiva das vidas em seus territórios. Os conflitos gerados pelas disputas nessas áreas repercutem nas mais variadas violências contra essas populações.
A PEC nº 03/2022, também é contraditória no que se refere às avaliações e recomendações geradas no Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima, o qual defende o estabelecimento de faixas de não edificação, possibilitando a recuperação, restauração e refuncionalização dos ecossistemas localizados nos terrenos de marinha e seus acrescidos. Isso porque essa área é de fundamental importância para a estabilidade do litoral e para a conservação da biodiversidade, sobretudo nas áreas onde os impactos da erosão costeira e das inundações marinhas já são realidade. Lembramos que estudos nacionais sobre erosão costeira revelam que mais de 30% das praias brasileiras estão em processo de erosão e que essa tendência poderá se agravar rapidamente com a perda das barreiras naturais, com a pressão urbana e obras inadequadas, assim como com o aumento dos eventos extremos e do nível do mar (MMA, 2018).
Por fim, vale lembrar que o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (lei federal nº 7.661/88) define que as praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido. Com a aprovação da PEC nº 03/2022, o livre e franco acesso às praias, que atualmente já está sendo ameaçado ou impedido ilegalmente por diversos empreendimentos, certamente será ainda mais ameaçado, tendo em vista a pressão econômica para apropriação sem precedentes da orla marítima, espaço que possui os maiores valores imobiliários de todo o país. Neste sentido, ficam ameaçados também os povos e as comunidades tradicionais e periféricas, como pescadores artesanais, marisqueiras e quilombolas, que terão dificuldades de resistir em seus territórios diante da especulação imobiliária e da pressão de grandes grupos econômicos para adquirir tais terrenos.
Diante do exposto e da importância das praias e da orla marítima para toda a sociedade brasileira, é fundamental garantir que os terrenos de marinha permaneçam como propriedade da União, um patrimônio nacional de livre acesso para toda a população brasileira e não para usufruto e lucro de uma minoria.
Patrícia Rocha Chaves - Presidente da ANPEGE
Charlles da França Antunes - Presidente AGB Nacional
Também subscrevem a nota as seguintes entidades:
A Associação Brasileira de Antropologia (ABA)
A Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Comunicação (COMPÓS)
A Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura (ABCIBER)
A Federação Brasileira das Associações Científicas e Acadêmicas de Comunicação (SOCICOM)
A Associação Nacional de História (ANPUH)
O Programa de Geologia e Geofísica Marinha (PGGM)
A Associação Brasileira de Ensino de Jornalismo (ABEJ)
A Rede Nacional de Combate à desinformação (RNCD)
A Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED)
A Federação Brasileira dos Professores de Francês (FBPF)
A Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI)
A Associação Brasileira de Professores de Italiano (ABPI)
A Associação de Linguística Aplicada do Brasil (ALAB)
A Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (ABRAPEC)
A Associação Brasileira de Pesquisadores em Tradução (ABRAPT)
A Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das TecnologiasESOCITE.BR
A Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS)
A Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC)
A Associação Brasileira de Ensino de Biologia (SBEnBio)
A Associação Brasileira de História Oral (ABHO)
A Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL)
Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN)
Associação Brasileira de Pesquisadores em História da Mídia (Alcar)
A Associação Brasileira de Professores de Língua Inglesa da Rede Federal de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (ABRALITEC)
A Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Educação (ANPEd)
A União de Geomorfologia Brasileira (UGB)
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